A busca pela certeza e segurança: a ruptura trazida pelo universo cartesiano
Por Karin Cristina K. Pereira
Nos processos codificatórios do século XIX, verificou-se o cultivo de uma incansável busca pela precisão e segurança no Direito, sendo que tudo o que não apontasse para a tão almejada exatidão, restava por ser rechaçado pela ordem jurídica. Tais vícios podem ser compreendidos a partir da constatação de que a obsessão pela certeza é herança da modernidade, emergindo o racionalismo como instrumento viabilizador da criação de métodos e fórmulas pré-estabelecidas no processo do conhecimento[1]. Desta forma, torna-se proveitoso que se construa uma ponte entre o contexto antigo e medieval e o cenário da modernidade, no qual há uma ruptura nos enfoques trazidos pela filosofia, que possui em René Descartes[2], um marco decisivo.
Na antigüidade e no período medieval, a filosofia apontava para a direção de onde se encontraria a natureza das coisas, e ao visualizar um universo cosmo-teológico, desaguava-se na ilação de que a verdade estaria fora do homem e seria a ele revelada por Deus ou pela natureza. Nesta via, por meio da razão - elemento que distingue o homem das feras - , estaria o ser humano dotado de instrumental necessário para entender as revelações, chegando à verdade pela simples contemplação.
Esta confiança em Deus ou na natureza rompeu-se de forma bastante acentuada com a modernidade, devido a uma série de fatores que vieram a alterar as verdades construídas pelo homem, implicando transmutação das crenças humanas. Na religião, começaram a existir divisões (franciscanos e dominicanos, católicos e protestantes), e o saldo disso, foi a percepção de que no plano teológico não seria mais possível encontrar a segurança e respostas que o homem buscava.
Assim se caracterizou a Idade Média, como um período de fanatismo e dualidade, e a religião, que ofertaria a paz e o amor aos seres do mundo, passou a ser a via de matanças e incredulidades. Os descobrimentos geográficos aparecem como outra forte contribuição para a quebra de certezas que estavam estabelecidas, uma vez que com as grandes navegações, foram descobertos confins nunca antes imaginados. O homem então passou a olhar ao seu redor de outra forma, constatando que no mar não existiam monstros, que o mundo era redondo (não havendo um penhasco depois do horizonte), e que o universo não era tão abstrato. O que existiria então atrás das estrelas[3]? Hanna Arendt, traz referência às pontuais descobertas de Galileu, ao refletir:
(...) Os filósofos compreenderam imediatamente que as descobertas de Galileu não significavam mero desafio ao depoimento dos sentidos, e que agora já não era a razão, como em Aristarco e Copernico, que lhes havia violado os sentidos; se assim fosse, ter-lhes-ia bastado optar entre suas faculdades e deixar que a razão ingênita se tornasse a concubina de sua credulidade. Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem – o telescópio – que realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a observação nem a especulação, mas a entrada em cena do homo faber, da atividade de fazer e fabricar .(...) a antiga oposição entre verdade sensual e a verdade racional, entre a capacidade inferior dos sentidos e a capacidade superior da razão no tocante à apreensão da verdade, perdeu sua importância ao lado deste desafio, ao lado da óbvia implicação de que a verdade e a realidade não são dadas, que nem uma nem outra se apresenta como é, e que somente na interferência com a aparência, na eliminação das aparências, pode haver esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento[4].
O ponto crucial que aqui se situa é o contexto em que mergulha o pensamento do homem, havendo uma desmistificação do mundo ao seu redor, sendo que resta ele, por se distanciar não só da religião e da natureza da terra mas da própria terra[5]. Tais acontecimentos culminaram no pensamento cartesiano, pois o filósofo Descartes percebe-se absolutamente impressionado pelas descobertas das ciências naturais. Para o pensador, nada mais era seguro, nem a religião ou as revelações de Deus e da natureza. Fazia-se necessário o exercício da dúvida, transportando-se os elementos do divino e do cosmos para a racionalidade humana[6]. O homem deveria então duvidar de tudo, não confiar jamais em seus sentidos, que o enganavam com freqüência[7]. Desta forma, não se poderia perceber as coisas de dentro do mundo, devendo-se transcendê-lo[8]. No entanto, o conhecimento da realidade implicaria na correta representação das coisas, ligando-se interioridade a exterioridade, sendo a ponte construída pelo mundo das idéias[9].
Um vez que sepultadas estavam as antigas certezas, nos elementos que constituíram o universo cartesiano, havia uma tentativa de encontrar um conhecimento que não pudesse ser derrubado por nenhum outro, sendo a filosofia agora, racional. Através da racionalidade humana, seria possível submeter as leis da natureza à razão. Em Descartes, a verdade não irá se revelar ao homem, ele é que possuirá os instrumentos para descobrí-la.
No que toca aos pesadelos cartesianos, vale referir que o primeiro deles direciona-se no sentido de que toda a realidade, tudo o que o homem acostumou a dizer que é real não passa de ilusão. O segundo, traz a idéia que para além deste estado de coisas poderia ser que existisse um gênio mau, um Deus-mau, que faria brincadeiras de mau gosto para levar o homem a uma verdade que seria, em realidade, ilusão[10]. E se tudo é dúvida, a única coisa certa é que se está duvidando, então, a certeza é o pensamento do homem, através da estrutura do cogito, erga sum (penso, logo existo)[11].
Aqui entra o critério do método: se o homem aplicasse o método – através do qual a mente humana funciona – ele chegaria a veracidade. Esta é a época da hipótese, da técnica. A ciência moderna se desenvolve a partir das hipóteses que são pelo homem submetidas a verificações. Algo que se revela de importância visceral para o estudo da hermenêutica e as construções dos métodos de interpretação, é que o homem ao aplicar sua racionalidade, tornou-se refém destes parâmetros que ele mesmo construiu, ou seja, só consegue pensar através de métodos. Desta forma, não pode provar o mundo em si mas pode provar o mundo a partir de si, o que faz com que o ser humano não esteja integrado com o todo, mas se considere acima do todo, quem constrói o todo, na típica visão do antropocentrismo.
Transportando a visão cartesiana do método para a aplicação do Direito, verifica-se, não raro, uma aniquilação na compreensão do sujeito, a ser absorvido e devorado pelo processo de acoplagem presente no dedutivismo. Este é o ponto nevrálgico alimentado pela dogmática jurídica, que, ao estabelecer sentidos universalizantes (existencialistas/conceituais), contribui decisivamente para a ocultação da singularidade. Trata-se, precisamente, da elaboração de um processo de silogismo entre uma premissa maior e uma menor, operando-se uma subsunção conclusiva (acoplamento), mediante o uso de métodos, decorrendo daí, a objetificação dos fenômenos[12].
O processo subsuntivo parte de um significante-primordial-fundante que é a premissa maior (exemplificativamente, a lei, interpretada pelos “métodos” tradicionais - sistemático, teológico, gramatical, etc.) que opera uma subsunção conclusiva ao significado, uma premissa menor (que seria o caso em concreto). Desta forma estaria a se subsumir o individual sobre os conceitos do geral[13]. Os sistemas romano-germânicos, que têm como fonte primária e principal do Direito a lei, tradicionalmente, seguem este método (dedutivo) para aplicar o Direito, conforme anota Zitscher:
“a expressão principal do raciocínio dedutivo é o silogismo. transferido à aplicação do direito, leva ao método no qual o juiz romano-germânico formula a regra a ser aplicada ao caso sob judice, resultado da dedução feita em torno da norma geral e abstrata da lei ou do código. assim, diante de um caso concreto para solucionar, o juiz deve procurar a norma certa no código ou na lei, e indagar seu conteúdo. se os fatos nela cabem, já se providencia a solução[14]."
Indubitável que o espírito do método situa-se no contexto da modernidade, incutindo-se a crença imaginária de que só através deste caminho seria possível a tão almejada segurança.[15] Neste sentido é que se faz necessário (re)discutir a questão da (re)construção coletiva do conhecimento, que deve implicar em uma concepção relativa e relacional de verdade[16], contextualizando as situações para a tomada de decisão no caso concreto, na percepção de que não existem verdades absolutas, certezas inabaláveis, mas peculiaridades e especificidades que não podem ser engolidas pelos conceitos fechados.
[1] O racionalismo e a busca pela certeza é marco sólido, na modernidade, em todas as áreas do conhecimento, permeando os “métodos” de ensino e contornando o pensamento jurídico em todas as suas construções.
[2] DESCARTES, René. O Discurso do Método - Regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2003.
[3] Conforme observa BAUMER: “Deste vasto inquérito surgiu um quadro de natureza, novo e surpreendente. Não é evidente, observou o poeta e dramaturgo John Dryden, em 1668, que nestes últimos séculos (quando o estudo da filosofia natural se tornou a ocupação de todos os virtuosi da Cristandade) se nos revelou toda uma nova natureza? Esta nova natureza ainda não completa em todos os seus contornos – Newton estava ainda por vir – era a criação conjunta da ciência com a filosofia, de uma sucessão especialmente brilhante de astrônomos e cientistas físicos, de Copérnico a Galileu, e de filósofos que iam de Descartes a Espinoza, mas incluindo também neoplatônicos como Giordano Bruno. Esta teoria, posteriormente chamada mecanicista ou, mais tecnicamente, teoria corpuscular-cibernética da natureza substituiu, embora de modo nenhum abruptamente, a teoria greco-cristã, que dominou o pensamento e se introduziu na arte e na literatura, a partir da idade média até o século XVII.” BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vol I. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p. 66-67.
[4] ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Unversitária, 2003. p. 226-287.
[5] Ainda, com lucidez magistral, aponta ARENDT: “A preplexidade inerente à descoberta do ponto de vista arquimediano era e ainda é o fato de que o ponto fora da terra fora descoberto por uma criatura presa à terra que descobriu que ela própria vivia num mundo, não apenas diferente, mas às avessas no instante em que procurava aplicar sua visão universal do mundo às coisas que a rodeavam. A solução cartesiana desta perplexidade foi transferir o ponto aqreuimediano para dentro do próprio homem, escolher como último ponto de referência a configuração da própria mente humana, que se convence da realidade e da certeza dentro de um arcabouço de fórmulas matemáticas produzidas por ela mesma.” ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. p. 297.
[6] A observação de TAYLOR, neste tocante, traz referenciais adequados à leitura do pensamento cartesiano: “ Alguma mudança se tornou inevitável, pois a ordem cósmica não era mais vista como uma incorporação das idéias. Descartes rejeitou totalmente essa forma teleológica de pensamento e abandonou por completo a teoria do logos ôntico. O universo devia ser compreendido mecanicamente, pelo método resolutivo/combinatório criado por Galileu. Essa mudança na teoria científica, como a chamaríamos hoje, envolveu também uma transformação radical na antropologia.”. TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. São Paulo: Loyola, 1997. p. 190.
[7] Vê o sol se pôr mas na verdade é q terra que se põe, encosta no frio e se queima, ao dormir, sonha acreditando que o que está vivendo é real. E, ampliando o exercício da dúvida para além do sonho, reflete: “quanto ao erro mais comum dos nossos sonhos, que consiste em nos representarem diversos objetos da mesma maneira como o fazem os nossos sentidos exteriores, não importa que ele nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais idéias, porque estas, muitas vezes, nos podem enganar também quando não estamos dormindo como acontece quando os doentes de icterícia vêem tudo amarelo, ou quando os astros ou outros corpos muito distantes nos parecem menores do que são. Pois, enfim, quer acordados, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência da nossa razão.” DESCARTES, René. op. cit. p. 46.
[8] A idéia do homem como observador externo é algo que o filósofo constrói influenciado pelas invenções como o telescópio.
[9] Segundo TAYLOR, haveria a busca por um quadro interior correto da realidade exterior, sendo que a noção de idéia, para o autor: “emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a coisas da mente, assim também a ordem das idéias deixa de ser algo que descobrirmos e passa a ser algo que construímos. Além disso, as exigências dessa construção incluem sua correta equiparação com a realidade externa, mas também vão além disso. Como argumentou Descartes de forma muito convincente, as representações adquirem o status de conhecimento não apenas por ser corretas, mas também por gerar certeza.” TAYLOR, Charles. op. cit. P. 191.
[10] Segundo TAYLOR, a racionalidade cartesiana elege cânones, onde a importância maior é dada pelas propriedades da atividade do pensamento e não para as crenças que daí emergem, e, neste sentido, observa: “É claro que Descartes afirma que seu procedimento resultará em crenças substantivamente verdadeiras a respeito do mundo. Mas isso é algo que precisa ser estabelecido. Na verdade, estabelecê-lo é uma das metas mais importantes da filosofia de Descartes. Fazemos a ligação entre procedimento e verdade com a prova de que somos criações de um Deus veraz. O procedimento não é definido apenas como aquele que leva à verdade substantiva. Ele poderia estar nos desviando totalmente da rota, se tivéssemos sido vítimas de um gênio maligno. Agora, a racionalidade é uma propriedade interna do pensamento subjetivo, em vez de consistir em sua visão de realidade. TAYLOR, Charles. op. cit. p. 206. Importante salientar ainda, que DESCARTES fundamenta filosoficamente a existência de Deus, sustentado que ele é mais perfeito que o homem, e é o responsável pela criação da res extensa (idéia de que o corpo humano é uma máquina, a matéria se espalha, é extensa, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço) e da res cogitas (a razão humana não se projeta no espaço como a matéria, a razão pode ocupar vários espaços ao mesmo tempo, e através da racionalidade humana se consegue submeter os elementos, as leis da natureza à razão humana). DESCARTES, René. op. cit. p. 44-45.
[11] Neste sentido, conclui o filósofo: “finalmente, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando acordados podem ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja então um só verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que outrora me entraram no espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. ,Mas logo depois, observei que, enquanto pretendia sim considerar tudo falso, era forçoso que eu, que pensava, fosse alguma coisa. Percebi, então,que a verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que nem mesmo as mais extravagantes suposições dos céticos poderiam abalá-la. E, assim, julgando, conclui que poderia aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que buscava. DESCARTES, René. op. cit. 41-42.
[12] Conforme bem assevera STRECK: “Nesta de-caída em direção à inautenticidade, ocorre a alienação, onde o jurista aliena-a-sua-ação em favor do outro (allienus=outro). Ou seja, falará sobre o Direito a partir de um limitado horizonte de sentido, repetindo o (pré) estabelecido pelo sentido comum, (com)vivendo em meio a idéias e sentimentos acabados e inalteráveis (Heidgger-Stein). Será assim, um ente exilado de si mesmo e do ser, abrindo mão de sua capacidade de atribuir um sentido ao ser, enfim, abdicando da possibilidade de tirar o ente de seu estado de velamento.” STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica e o acontecer (ereignen) da constituição. in Anuário do Programa de Pós Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – UNISINOS. São Leopoldo: 2002.p. 117-118.
[13] A título de exemplificação, utilizando-se o instituto do contrato e seus princípios: a premissa maior, significante seria o princípio do pacta sunt servanda e a premissa menor, significado, um contrato de mútuo feneratício entre uma pessoa física e uma grande coorporação econômica. Tal convenção contém juros abusivos, com capitalização mensal, cobrança de comissão de permanência dentre outros encargos excessivamente onerosos. Desta forma, o significante acopla o significado, operando a subsunção, impossibilitando-se a análise do caso em concreto, em uma total abstração do sujeito. É claro que tal procedimento serve ao objetivo perseguido pelas codificações, quais sejam, o da simplificação e operabilidade na aplicação do Direito, uma vez que um dispositivo sobre contrato pode ser aplicado a todos os contratos, indefinidamente, no processo de acoplagem.
[14] ZITSCHER, Harriet Christiane. Metodologia do ensino jurídico com casos – teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 27-28.
[15] Daí tem-se o elenco de uma série infindável de críticas ao estabelecimento de cláusulas gerais no ordenamento jurídico, sob a alegação de que a normatização das mesmas trazem insegurança. Estas observações aclaram a presença do inegável vício pelo método e previsibilidade, que acomete os juristas.
[16] Conforme aponta CECÍLIA OSOWSKI: “(...) Significa que já não mais lidamos com verdades eternas e imútáveis, essenciais, que estão aí, para serem descobertas pelos sujeitos que conhecem, ensinando ou aprendendo, mas com verdades relativas e descontextualizadas, passíveis de modificações, das quais nos aproximamos ou nos afastamos. A verdade, desta forma, é problema a ser investigado e realidade a ser perquirida, apreendida, num contínuo processo de encontrar-procurar.” OSOWSKI, Cecília. Planejamento do ensino e da aprendizagem: processo investigativo. Revista Palavra como vida. São Leopoldo: Unisinos, 1996. Março. p. 8.
Nos processos codificatórios do século XIX, verificou-se o cultivo de uma incansável busca pela precisão e segurança no Direito, sendo que tudo o que não apontasse para a tão almejada exatidão, restava por ser rechaçado pela ordem jurídica. Tais vícios podem ser compreendidos a partir da constatação de que a obsessão pela certeza é herança da modernidade, emergindo o racionalismo como instrumento viabilizador da criação de métodos e fórmulas pré-estabelecidas no processo do conhecimento[1]. Desta forma, torna-se proveitoso que se construa uma ponte entre o contexto antigo e medieval e o cenário da modernidade, no qual há uma ruptura nos enfoques trazidos pela filosofia, que possui em René Descartes[2], um marco decisivo.
Na antigüidade e no período medieval, a filosofia apontava para a direção de onde se encontraria a natureza das coisas, e ao visualizar um universo cosmo-teológico, desaguava-se na ilação de que a verdade estaria fora do homem e seria a ele revelada por Deus ou pela natureza. Nesta via, por meio da razão - elemento que distingue o homem das feras - , estaria o ser humano dotado de instrumental necessário para entender as revelações, chegando à verdade pela simples contemplação.
Esta confiança em Deus ou na natureza rompeu-se de forma bastante acentuada com a modernidade, devido a uma série de fatores que vieram a alterar as verdades construídas pelo homem, implicando transmutação das crenças humanas. Na religião, começaram a existir divisões (franciscanos e dominicanos, católicos e protestantes), e o saldo disso, foi a percepção de que no plano teológico não seria mais possível encontrar a segurança e respostas que o homem buscava.
Assim se caracterizou a Idade Média, como um período de fanatismo e dualidade, e a religião, que ofertaria a paz e o amor aos seres do mundo, passou a ser a via de matanças e incredulidades. Os descobrimentos geográficos aparecem como outra forte contribuição para a quebra de certezas que estavam estabelecidas, uma vez que com as grandes navegações, foram descobertos confins nunca antes imaginados. O homem então passou a olhar ao seu redor de outra forma, constatando que no mar não existiam monstros, que o mundo era redondo (não havendo um penhasco depois do horizonte), e que o universo não era tão abstrato. O que existiria então atrás das estrelas[3]? Hanna Arendt, traz referência às pontuais descobertas de Galileu, ao refletir:
(...) Os filósofos compreenderam imediatamente que as descobertas de Galileu não significavam mero desafio ao depoimento dos sentidos, e que agora já não era a razão, como em Aristarco e Copernico, que lhes havia violado os sentidos; se assim fosse, ter-lhes-ia bastado optar entre suas faculdades e deixar que a razão ingênita se tornasse a concubina de sua credulidade. Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem – o telescópio – que realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a observação nem a especulação, mas a entrada em cena do homo faber, da atividade de fazer e fabricar .(...) a antiga oposição entre verdade sensual e a verdade racional, entre a capacidade inferior dos sentidos e a capacidade superior da razão no tocante à apreensão da verdade, perdeu sua importância ao lado deste desafio, ao lado da óbvia implicação de que a verdade e a realidade não são dadas, que nem uma nem outra se apresenta como é, e que somente na interferência com a aparência, na eliminação das aparências, pode haver esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento[4].
O ponto crucial que aqui se situa é o contexto em que mergulha o pensamento do homem, havendo uma desmistificação do mundo ao seu redor, sendo que resta ele, por se distanciar não só da religião e da natureza da terra mas da própria terra[5]. Tais acontecimentos culminaram no pensamento cartesiano, pois o filósofo Descartes percebe-se absolutamente impressionado pelas descobertas das ciências naturais. Para o pensador, nada mais era seguro, nem a religião ou as revelações de Deus e da natureza. Fazia-se necessário o exercício da dúvida, transportando-se os elementos do divino e do cosmos para a racionalidade humana[6]. O homem deveria então duvidar de tudo, não confiar jamais em seus sentidos, que o enganavam com freqüência[7]. Desta forma, não se poderia perceber as coisas de dentro do mundo, devendo-se transcendê-lo[8]. No entanto, o conhecimento da realidade implicaria na correta representação das coisas, ligando-se interioridade a exterioridade, sendo a ponte construída pelo mundo das idéias[9].
Um vez que sepultadas estavam as antigas certezas, nos elementos que constituíram o universo cartesiano, havia uma tentativa de encontrar um conhecimento que não pudesse ser derrubado por nenhum outro, sendo a filosofia agora, racional. Através da racionalidade humana, seria possível submeter as leis da natureza à razão. Em Descartes, a verdade não irá se revelar ao homem, ele é que possuirá os instrumentos para descobrí-la.
No que toca aos pesadelos cartesianos, vale referir que o primeiro deles direciona-se no sentido de que toda a realidade, tudo o que o homem acostumou a dizer que é real não passa de ilusão. O segundo, traz a idéia que para além deste estado de coisas poderia ser que existisse um gênio mau, um Deus-mau, que faria brincadeiras de mau gosto para levar o homem a uma verdade que seria, em realidade, ilusão[10]. E se tudo é dúvida, a única coisa certa é que se está duvidando, então, a certeza é o pensamento do homem, através da estrutura do cogito, erga sum (penso, logo existo)[11].
Aqui entra o critério do método: se o homem aplicasse o método – através do qual a mente humana funciona – ele chegaria a veracidade. Esta é a época da hipótese, da técnica. A ciência moderna se desenvolve a partir das hipóteses que são pelo homem submetidas a verificações. Algo que se revela de importância visceral para o estudo da hermenêutica e as construções dos métodos de interpretação, é que o homem ao aplicar sua racionalidade, tornou-se refém destes parâmetros que ele mesmo construiu, ou seja, só consegue pensar através de métodos. Desta forma, não pode provar o mundo em si mas pode provar o mundo a partir de si, o que faz com que o ser humano não esteja integrado com o todo, mas se considere acima do todo, quem constrói o todo, na típica visão do antropocentrismo.
Transportando a visão cartesiana do método para a aplicação do Direito, verifica-se, não raro, uma aniquilação na compreensão do sujeito, a ser absorvido e devorado pelo processo de acoplagem presente no dedutivismo. Este é o ponto nevrálgico alimentado pela dogmática jurídica, que, ao estabelecer sentidos universalizantes (existencialistas/conceituais), contribui decisivamente para a ocultação da singularidade. Trata-se, precisamente, da elaboração de um processo de silogismo entre uma premissa maior e uma menor, operando-se uma subsunção conclusiva (acoplamento), mediante o uso de métodos, decorrendo daí, a objetificação dos fenômenos[12].
O processo subsuntivo parte de um significante-primordial-fundante que é a premissa maior (exemplificativamente, a lei, interpretada pelos “métodos” tradicionais - sistemático, teológico, gramatical, etc.) que opera uma subsunção conclusiva ao significado, uma premissa menor (que seria o caso em concreto). Desta forma estaria a se subsumir o individual sobre os conceitos do geral[13]. Os sistemas romano-germânicos, que têm como fonte primária e principal do Direito a lei, tradicionalmente, seguem este método (dedutivo) para aplicar o Direito, conforme anota Zitscher:
“a expressão principal do raciocínio dedutivo é o silogismo. transferido à aplicação do direito, leva ao método no qual o juiz romano-germânico formula a regra a ser aplicada ao caso sob judice, resultado da dedução feita em torno da norma geral e abstrata da lei ou do código. assim, diante de um caso concreto para solucionar, o juiz deve procurar a norma certa no código ou na lei, e indagar seu conteúdo. se os fatos nela cabem, já se providencia a solução[14]."
Indubitável que o espírito do método situa-se no contexto da modernidade, incutindo-se a crença imaginária de que só através deste caminho seria possível a tão almejada segurança.[15] Neste sentido é que se faz necessário (re)discutir a questão da (re)construção coletiva do conhecimento, que deve implicar em uma concepção relativa e relacional de verdade[16], contextualizando as situações para a tomada de decisão no caso concreto, na percepção de que não existem verdades absolutas, certezas inabaláveis, mas peculiaridades e especificidades que não podem ser engolidas pelos conceitos fechados.
[1] O racionalismo e a busca pela certeza é marco sólido, na modernidade, em todas as áreas do conhecimento, permeando os “métodos” de ensino e contornando o pensamento jurídico em todas as suas construções.
[2] DESCARTES, René. O Discurso do Método - Regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2003.
[3] Conforme observa BAUMER: “Deste vasto inquérito surgiu um quadro de natureza, novo e surpreendente. Não é evidente, observou o poeta e dramaturgo John Dryden, em 1668, que nestes últimos séculos (quando o estudo da filosofia natural se tornou a ocupação de todos os virtuosi da Cristandade) se nos revelou toda uma nova natureza? Esta nova natureza ainda não completa em todos os seus contornos – Newton estava ainda por vir – era a criação conjunta da ciência com a filosofia, de uma sucessão especialmente brilhante de astrônomos e cientistas físicos, de Copérnico a Galileu, e de filósofos que iam de Descartes a Espinoza, mas incluindo também neoplatônicos como Giordano Bruno. Esta teoria, posteriormente chamada mecanicista ou, mais tecnicamente, teoria corpuscular-cibernética da natureza substituiu, embora de modo nenhum abruptamente, a teoria greco-cristã, que dominou o pensamento e se introduziu na arte e na literatura, a partir da idade média até o século XVII.” BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vol I. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p. 66-67.
[4] ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Unversitária, 2003. p. 226-287.
[5] Ainda, com lucidez magistral, aponta ARENDT: “A preplexidade inerente à descoberta do ponto de vista arquimediano era e ainda é o fato de que o ponto fora da terra fora descoberto por uma criatura presa à terra que descobriu que ela própria vivia num mundo, não apenas diferente, mas às avessas no instante em que procurava aplicar sua visão universal do mundo às coisas que a rodeavam. A solução cartesiana desta perplexidade foi transferir o ponto aqreuimediano para dentro do próprio homem, escolher como último ponto de referência a configuração da própria mente humana, que se convence da realidade e da certeza dentro de um arcabouço de fórmulas matemáticas produzidas por ela mesma.” ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. p. 297.
[6] A observação de TAYLOR, neste tocante, traz referenciais adequados à leitura do pensamento cartesiano: “ Alguma mudança se tornou inevitável, pois a ordem cósmica não era mais vista como uma incorporação das idéias. Descartes rejeitou totalmente essa forma teleológica de pensamento e abandonou por completo a teoria do logos ôntico. O universo devia ser compreendido mecanicamente, pelo método resolutivo/combinatório criado por Galileu. Essa mudança na teoria científica, como a chamaríamos hoje, envolveu também uma transformação radical na antropologia.”. TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. São Paulo: Loyola, 1997. p. 190.
[7] Vê o sol se pôr mas na verdade é q terra que se põe, encosta no frio e se queima, ao dormir, sonha acreditando que o que está vivendo é real. E, ampliando o exercício da dúvida para além do sonho, reflete: “quanto ao erro mais comum dos nossos sonhos, que consiste em nos representarem diversos objetos da mesma maneira como o fazem os nossos sentidos exteriores, não importa que ele nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais idéias, porque estas, muitas vezes, nos podem enganar também quando não estamos dormindo como acontece quando os doentes de icterícia vêem tudo amarelo, ou quando os astros ou outros corpos muito distantes nos parecem menores do que são. Pois, enfim, quer acordados, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência da nossa razão.” DESCARTES, René. op. cit. p. 46.
[8] A idéia do homem como observador externo é algo que o filósofo constrói influenciado pelas invenções como o telescópio.
[9] Segundo TAYLOR, haveria a busca por um quadro interior correto da realidade exterior, sendo que a noção de idéia, para o autor: “emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a coisas da mente, assim também a ordem das idéias deixa de ser algo que descobrirmos e passa a ser algo que construímos. Além disso, as exigências dessa construção incluem sua correta equiparação com a realidade externa, mas também vão além disso. Como argumentou Descartes de forma muito convincente, as representações adquirem o status de conhecimento não apenas por ser corretas, mas também por gerar certeza.” TAYLOR, Charles. op. cit. P. 191.
[10] Segundo TAYLOR, a racionalidade cartesiana elege cânones, onde a importância maior é dada pelas propriedades da atividade do pensamento e não para as crenças que daí emergem, e, neste sentido, observa: “É claro que Descartes afirma que seu procedimento resultará em crenças substantivamente verdadeiras a respeito do mundo. Mas isso é algo que precisa ser estabelecido. Na verdade, estabelecê-lo é uma das metas mais importantes da filosofia de Descartes. Fazemos a ligação entre procedimento e verdade com a prova de que somos criações de um Deus veraz. O procedimento não é definido apenas como aquele que leva à verdade substantiva. Ele poderia estar nos desviando totalmente da rota, se tivéssemos sido vítimas de um gênio maligno. Agora, a racionalidade é uma propriedade interna do pensamento subjetivo, em vez de consistir em sua visão de realidade. TAYLOR, Charles. op. cit. p. 206. Importante salientar ainda, que DESCARTES fundamenta filosoficamente a existência de Deus, sustentado que ele é mais perfeito que o homem, e é o responsável pela criação da res extensa (idéia de que o corpo humano é uma máquina, a matéria se espalha, é extensa, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço) e da res cogitas (a razão humana não se projeta no espaço como a matéria, a razão pode ocupar vários espaços ao mesmo tempo, e através da racionalidade humana se consegue submeter os elementos, as leis da natureza à razão humana). DESCARTES, René. op. cit. p. 44-45.
[11] Neste sentido, conclui o filósofo: “finalmente, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando acordados podem ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja então um só verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que outrora me entraram no espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. ,Mas logo depois, observei que, enquanto pretendia sim considerar tudo falso, era forçoso que eu, que pensava, fosse alguma coisa. Percebi, então,que a verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que nem mesmo as mais extravagantes suposições dos céticos poderiam abalá-la. E, assim, julgando, conclui que poderia aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que buscava. DESCARTES, René. op. cit. 41-42.
[12] Conforme bem assevera STRECK: “Nesta de-caída em direção à inautenticidade, ocorre a alienação, onde o jurista aliena-a-sua-ação em favor do outro (allienus=outro). Ou seja, falará sobre o Direito a partir de um limitado horizonte de sentido, repetindo o (pré) estabelecido pelo sentido comum, (com)vivendo em meio a idéias e sentimentos acabados e inalteráveis (Heidgger-Stein). Será assim, um ente exilado de si mesmo e do ser, abrindo mão de sua capacidade de atribuir um sentido ao ser, enfim, abdicando da possibilidade de tirar o ente de seu estado de velamento.” STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica e o acontecer (ereignen) da constituição. in Anuário do Programa de Pós Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – UNISINOS. São Leopoldo: 2002.p. 117-118.
[13] A título de exemplificação, utilizando-se o instituto do contrato e seus princípios: a premissa maior, significante seria o princípio do pacta sunt servanda e a premissa menor, significado, um contrato de mútuo feneratício entre uma pessoa física e uma grande coorporação econômica. Tal convenção contém juros abusivos, com capitalização mensal, cobrança de comissão de permanência dentre outros encargos excessivamente onerosos. Desta forma, o significante acopla o significado, operando a subsunção, impossibilitando-se a análise do caso em concreto, em uma total abstração do sujeito. É claro que tal procedimento serve ao objetivo perseguido pelas codificações, quais sejam, o da simplificação e operabilidade na aplicação do Direito, uma vez que um dispositivo sobre contrato pode ser aplicado a todos os contratos, indefinidamente, no processo de acoplagem.
[14] ZITSCHER, Harriet Christiane. Metodologia do ensino jurídico com casos – teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 27-28.
[15] Daí tem-se o elenco de uma série infindável de críticas ao estabelecimento de cláusulas gerais no ordenamento jurídico, sob a alegação de que a normatização das mesmas trazem insegurança. Estas observações aclaram a presença do inegável vício pelo método e previsibilidade, que acomete os juristas.
[16] Conforme aponta CECÍLIA OSOWSKI: “(...) Significa que já não mais lidamos com verdades eternas e imútáveis, essenciais, que estão aí, para serem descobertas pelos sujeitos que conhecem, ensinando ou aprendendo, mas com verdades relativas e descontextualizadas, passíveis de modificações, das quais nos aproximamos ou nos afastamos. A verdade, desta forma, é problema a ser investigado e realidade a ser perquirida, apreendida, num contínuo processo de encontrar-procurar.” OSOWSKI, Cecília. Planejamento do ensino e da aprendizagem: processo investigativo. Revista Palavra como vida. São Leopoldo: Unisinos, 1996. Março. p. 8.